Desistir da dança e suas implicações psicológicas

Maria Cristina Lopes Quando a mente está leve a dança flui Psicologia da dança

Quando falamos de modalidades de dança de alta performance, especialmente o balé, existe uma realidade extremamente ignorada pela maioria dos estudiosos e mesmo praticantes da atividade: depois de anos de dedicação intensa, treinamentos extenuantes, dores, lesões e sonhos, apenas uma minoria conseguirá, de fato, dançar profissionalmente em alto nível. 

Ainda assim, a maioria dos dançarinos, que terá que lidar com a frustração e uma vida inteira após essa descoberta, é negligenciada pela ciência e pela comunidade, que não parece se esforçar para investigar os efeitos dessa perda para a vida dos bailarinos, nem em oferecer o suporte social e emocional necessário para que trilhem por um novo caminho.

Hoje, felizmente, alguns poucos estudos já começam a desbravar esse terreno, com vistas a descobrir o que acontece após uma bailarina ou um bailarino perceber que não será possível seguir com a dança de alta performance profissionalmente. E as consequências podem ser extremamente sérias: envolvem frustração, depressão, mudança de rotina, perda de rede de apoio, falta de interesse por outras atividades, entre outros. 

Sadham e Nicol (2015) entrevistaram cinco ex-bailarinas que desejavam dançar profissionalmente, mas não conseguiram realizar esse sonho, e que lutaram intensamente para restabelecer suas vidas após a dança. A partir delas, levantaram as principais implicações psicológicas relacionadas à desistência (muitas vezes, forçada) da atividade.

Maria Cristina Lopes. Sou formada pela PUC-Rio e mestre pela Universidade de Coimbra. Trabalho com a dança desde 2013 e desenvolvi o 1º curso de psicologia da dança do Brasil em 2016. Sou defensora da área de psicologia da dança, atendo bailarinos, ofereço consultoria para escolas e companhias e capacito professores e psicólogos nesta área promissora.

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Gabriela Romão. Jornalista formada pela Universidade de São Paulo (USP), é especializada em escrita científica. Estuda dança desde 2016, com ênfase em modalidades de dança de salão.

Contatos: gabi.r.romao@gmail.com | @romaogabriela

O que fazer após a desistência?


Quando falamos em danças de alta performance, e sobretudo no balé, dois fatos são uma realidade: nem todas as crianças e adolescentes que praticam a dança com afinco conseguirão se profissionalizar. E aqueles que sonham com isso e não conseguirem chegar lá, seja por lesões, questões pessoais ou outras complicações que apareçam pelo caminho, todos eles sofrerão de alguma forma ao abandonar esse sonho.

Mas, também há o outro lado da moeda: desistir de dançar profissionalmente não precisa ser o fim absoluto, e é essencial que essas crianças e adolescentes, que são a maioria, possam receber o suporte necessário para reinventar e reconstruir suas vidas, de preferência com um profissional qualificado para orientá-las.

O primeiro ponto de aconselhamento pode ser que, independente de seguir profissionalmente ou não, abandonar de vez a dança pode trazer muito mais perdas do que ganhos. Dançarinos são apaixonados pela sua prática e cortá-la de vez de suas rotinas pode trazer um estrago muito maior do que se a pessoa mantê-la como um hobby ou atividade importante no seu dia a dia.

Sendo assim, manter-se dançando é muito importante para amenizar os efeitos que uma desistência total acarretaria. Dançarinos não deixarão de sê-lo por pararem de dançar profissionalmente, mas abrir possibilidades para descobrir sua identidade para além da dança pode ser importante para seguir em frente no pós-dança profissional.

Para isso, também é essencial orientar bailarinos a explorar interesses fora da dança - mesmo enquanto ainda estão em formação - e sobre como direcionar suas habilidades adquiridas na dança para outras atividades. É preciso incentivá-los a ter contato com outros ambientes através de trabalhos de meio período ou voluntários e orientação educacional. Atenção aos detalhes, determinação, concentração, capacidade de se autoavaliarem e fazerem melhorias são exemplos de habilidades que podem ser bem exploradas em outras áreas de atuação.

Para concluir, é preciso dar tempo aos bailarinos que não alcançaram o sonho profissional de lamentar suas perdas, mas também conscientizá-los de que isso está longe de ser o fim - nada foi em vão e a dança ainda pode ser uma forte estrutura para que essa maioria, invisível no universo da dança, possa então seguir em frente. 


REFERÊNCIAS


Sadham, T.; Nicol, J. (2015). Aspiring Ballerinas and Implications for Counselling Practice. Canadian Journal of Counseling and Psychotherapy /  Revue canadienne de counseling et de psychothérapie, 49 (1), 1–19.

COMO FAZER REFERÊNCIA A ESTE ARTIGO: 

Lopes, M. C. (2021, dezembro 17) Desistir da dança e suas implicações psicológicas​ [Blog]. Recuperado de: https://www.mariacristinalopes.com/desistir-da-dan-a-e-suas-implica--es-psicol-gicas.html​​​

Sentimentos de raiva, frustração, decepção; depressão e baixa autoestima


Desde cedo, a dança (e mais especificamente o balé) exige treinamentos marcados por muita pressão, exigências, autodisciplina, dedicação extrema e perfeccionismo exacerbado. 

Bailarinos sofrem com dores, lesões, e à medida que vão se tornando adolescentes, passam a dedicar sua vida quase integralmente à dança. Horas e horas de tempo, trabalho e energia são investidas e um sonho - que de repente, desaba, seja por lesões, razões financeiras ou pelo dançarino não alcançar o nível de excelência necessário para praticar sua atividade profissionalmente.

Quando isso acontece, e o bailarino de fato abre mão da dança, naturalmente, sentimentos de raiva, frustração e decepção podem surgir com força, e até chegar a níveis mais profundos, como a depressão. A perda de um sonho e a percepção de que tudo foi em vão realmente pode se transformar em uma espécie de luto, e os dançarinos precisam de tempo para vivenciar esses sentimentos.


Perda de identidade

Especialmente para os bailarinos, a dedicação à dança começa muito cedo - dos 5 aos 6 anos de idade, mas há quem esteja dentro da modalidade desde 4 anos ou menos. Com a dedicação intensa, que deixa pouco tempo para outras atividades, e paixão desmedida pela modalidade, poucos bailarinos têm uma referência de quem são sem a dança em suas vidas. É comum ouvir de dançarinos que uma parte de si mesmo morreria se não pudesse dançar, e isso não deixa de ser em parte verdade.

Além disso, por suas rotinas, habilidades e sua prática, bailarinos são vistos como pessoas diferenciadas - no sentido mais literal da palavra: não são vistos como pessoas normais em outros meios que não os da dança. Abandonar esse ambiente pode resultar em um imenso desafio para o indivíduo, que terá que desenvolver habilidades para construir relacionamentos fora daquele espaço e se forçar a levar uma vida “normal” aos seus olhos.


Perda das redes de apoio

Por essa diferenciação diante do resto da sociedade - o que fica ainda mais evidente na infância e na adolescência, quando a convivência em um ambiente escolar regular pode se tornar difícil pelo pouco tempo livre para construir relações -, bailarinos tendem a construir suas amizades majoritariamente com outros bailarinos, seja pelas rotinas, atividades ou objetivos em comum. E isso se torna um problema quando o indivíduo desiste da dança profissional.

Isso significa que, automaticamente, a pessoa começa a perder boa parte de sua rede de apoio, sejam outros bailarinos, professores ou pessoas do meio da dança que ofereciam um suporte emocional, que ela também não consegue encontrar de imediato em outras pessoas por ter restringido suas amizades a um ambiente específico.  


Falta de interesses externos


A dança é uma atividade que exige muito tempo, esforço e dedicação - geralmente, na infância e na adolescência, não sobra muito espaço ou tempo para outras atividades na vida do bailarino. Sendo assim, a sensação de vazio ao tirar essa atividade do seu dia a dia pode ser profunda para o dançarino, e ainda piorada se, por não conhecer outros interesses, ele não saber como preencher esse tempo. 

É fato que também se apresenta como uma preocupação importante o fato de o bailarino não ter desenvolvido outras habilidades que não aquelas praticadas na dança. Com boa parte das desistências ocorrendo na adolescência, faz sentido que estes bailarinos fiquem receosos sobre seu futuro e independência financeira.

Em suma, a desistência da dança é algo que afeta violentamente a rotina do indivíduo, e junto às outras perdas, resulta em um ser humano perdido, muitas vezes sozinho, carente de identidade e de outros interesses.